sexta-feira, 3 de agosto de 2007

O Sonho

Sinto os meus pés descalços na laje fria. Sinto o vento passar-me nos cabelos, que passa pelas frestas das janelas. Sinto o cheiro a cera quente, a madeira envelhecida, a pó e humidade entranhados nas paredes, no chão, a toda a volta.
Olho as imagens nos pequenos altares. Bonecos sinistros, de olhos vidrados, de madeira morta, de barro sujo. Sem vida. Olham para mim como se fosse a única pessoa que alguma vez os contemplou. Afasto-me deles, metem-me medo. Fazem-me lembrar qualquer coisa aprisionada, triste, como quem espera algo que nunca chega, como quem perde a esperança mas nunca se cansa de esperar.
Olho as imagens coloridas, nos vidros. Retratam cenas que me são familiares, e ao mesmo tempo estranhas. Mostram figuras de sofrimento, de dor, de morte. Imagino que podem saltar dos vidros que os aprisionam a qualquer momento, que estão a espera de libertação, da luz que revelam a sua cor que as venham salvar. Não deixam de ter a sua beleza, as cores cintilantes do vidro bailam nos seus rostos estáticos, dando-lhes uma falsa forma de vida. E não se mexem, não saem do sitio onde foram desenhados. Estáticos. Imóveis. Inertes.
Caminho por entre as filas de bancos alinhados. Ninguém se senta lá. Ninguém presente. Chego à primeira fila, lá à frente. Um livro pousado na ponta do banco. Capa azul, letras douradas, pesado, grande. Sento-me e folheio-o. Letras pequenas dançam alegremente no papel amarelado. Letras pequeninas que contam histórias soltas, fábulas, contos. Não na mesma língua que a minha. Não percebo o que lá vem escrito. Não percebo a mensagem. Não sei o que quer dizer. Nem tão pouco para que serve.
À minha frente, um patamar liso, com um altar erguido, liso, branco, nu. Na parede atrás, uma cruz gigantesca, negra, um homem preso a ela. Morto. Sofrido. Acabado. Por baixo, mil velas acesas, incandescentes, a seus pés. Iluminam o seu senhor, que acabou de perecer. Guardam aquela imagem, como mil soldados guardam um forte.
Olho a minha volta.
Nada.
Silêncio.
Vazio.
Ninguém presente, nada vive. Os bonecos, os desenhos nos vidros coloridos, o livro pousado, o cheiro que se entranha. Nada vive.
Levanto-me do meu lugar no banco, o livro na mão. Aproximo-me dos degraus que levam ao patamar do altar, e subo-os, um a um. Aquilo que vejo nada é, nada. Um amontoado de símbolos sem significado, sem vida, sem fé. Não são nada. Novamente de olhos no livro azul, descubro-lhe uma utilidade. Não penso.
Atiro-o à cruz, que a faz cair, com o homem ainda lá pregado, em cima das velas, diante do fogo que o guardava. Arde. Tudo arde. A cruz, o homem, os guardiões do que era sagrado. Perecem, destruídos.
Volto as costas e caminho em direcção à porta.
Atrás de mim, o calor quente do fogo sagrado. Não olho para trás.
Sempre quis fazer isto.

AS

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