sábado, 1 de novembro de 2008

Pão, por deus ...

A luz era sempre diferente naquele dia. O sol, escondido entre nuvens que não eram brancas nem cinzentas, teimava em lançar sobre a terra molhada a sua luz coada pelas sombras altivas. O que fazia daquele dia diferente era a luz, e a sombra que faziam parecer que, por uma manhã, um dia, umas vagas horas, as casas, as pessoas, as circundâncias se transformassem numa terra diferente, num país diferente. Como se a luz e a sombra abrissem um portal para outras terras, outras paisagens, países e paragens nunca antes vistos ou visitados. Era um mundo diferente, só naquele dia. Os cheiros, as cores misturavam-se e faziam uma combinação inédita, em que tudo flutuava e, de alguma forma, permitia fazer o que raramente se fazia nos dias comuns e sem história.

E as crianças saíam todas a mesma hora. Em grupos, grande ou pequenos, seguiam pela estrada fora, carregando sacos nas mãos, primeiro vazios, depois a rebentar pelas costuras, sem conseguirem carregar nem mais um grama de guloseimas. Corriam a aldeia, batendo às portas, as campainhas, aos portões, as janelas, pedindo por deus aquilo que não precisavam. Contava-se que num antigamente longínquo, seriam crianças de barrigas grávidas de fome que tocavam às portas, as janelas e as campainhas para pedirem, não doces, mas pão, por deus, que se morre de fome. Desses tempos, não havia memória, mas aquele dia repetia-se na mesma, todos os anos, mudando o objecto, preferindo doces para tapar o buraco da vontade em vez do buraco da fome.

Corriam as crianças pela aldeia fora, fazendo as velhas virem à janela ver que correria era aquela, ainda caem por ali abaixo, que partem uma perna, até parece que gostam de ser malcriados, ao que isto chegou. Mas os malcriados não ligavam e continuavam a correr, empurrando-se e gritando, gargalhando pela rua fora. Interessava chegar a todas as casas antes do almoço, reunir todas as gulodices num saco gigante, depressa, antes que o sol do meio dia traga o demónio que muda a luz que ilumina os afazeres de um dia único e os torna corriqueiros. E no caminho de volta já as alças dos sacos cortam as palmas das mãos, tal é o peso, não há dinheiro que valha aos pais para levar os filhos ao dentista para exorcizar todas as caries.

E havia a casa da bruxa, a que iam todos juntos, não fosse a velha roubar um dos meninos e pô-lo na panela a guisar. Tinham medo dela, cheia de rugas e verrugas, a cheirar a couve cozida e a gatos imundos, nunca dava doces, que a má criação do mundo começa nos infantes e nos doces que comem, distribuindo pães com sabor a bafio. Desandavam dali os miúdos, com medo dos olhos de maldade da velha, que só queria vê-los longe. Assim que viravam na primeira esquina, atiravam os pães para longe com medo do veneno da bruxa, que tinha cara de querer cozinhar as cabeças de todos eles, e o pão era só uma armadilha. Porque a luz era sempre diferente naquele dia.

Só naquele dia.

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