Justificar a violência domestica como efeito dramático de estado alucinogénio provocado pelo vinho, ou como frustração porque o Benfica perde, é coisa que já vai passando de moda.
Primeiro, porque quem anda bêbedo anda na sua, quem é curtir a telha que leva, quer lá saber de quem vive na mesma casa. Depois, porque o futebol avermelhado anda mal de saúde há alguns anos a esta parte, infelizmente, se me perguntarem.
Mas, e deixando de comentários pouco idóneos, nem por isso o problema desaparece da realidade de muita gente. Não se trata apenas de umas ligeiras bofas que vão e vêm, que é o cúmulo de tudo, mas haverá outras formas de violência, outras formas de magoar, sem ser preciso levantar a mão. Agressões existem que doem mais com o olhar que as acompanham do que se fossem traduzidas em duas ou três costelas partidas.
E se de repente alguém de lembrasse de simplesmente desandar porta fora, sem dar justificação, um porquê, um já volto não te preocupes, um até já, ou mesmo um adeus até ao meu regresso? E se alguém pegasse nas malas, enquanto o outro está no duche, e saisse à socapa?
Não será também isso uma forma de violência? Não será essa das piores lanças que se espetam na carne, e lá ficam até que apodreça?
E se alguém, tal como as crianças, simples e puramente diz, não quero mais brincar contigo, és uma chata, agora vou à minha vida, e tu toma lá trocos para comprares um chupa? É suposto aceitar o chupa ( não que os miúdos de facto façam isto...) e ficar a assistir, serenamente, enquanto o mundo se desmorona?
Não será isto uma forma de violência que nada tem a ver com o álcool, ou mesmo com o futebol, com a natureza do indivíduo? Ou será explicado pela sacanice no seu estado mais puro?
Quantas feridas destas não existirão? Quantas mossas destas nunca foram parar as urgências do hospital da zona? Quantas lágrimas vertidas à conta de feridas tantas vezes mais profundas que um golpe de mão fechada?
Pode alguém chegar à policia e dizer, olhe faz favor, fui traída na minha confiança, na minha auto-estima, nos meus sentimentos mais profundos, não se importa de prender o cabrão, sr. guarda?
Pode alguém queixar-se e levar a tribunal uma causa de feridas psicológicas causadas pela inconstância de quem não bebe, mas é como se o fizesse?
Poderia enveredar por caminhos pouco interessantes que acabariam necessariamente na noção de danos morais e outras estirpes de danos não patrimoniais, sem nunca conseguir dar uma resposta concreta.
Que espécie de corpo, que espécie de alma aguenta semelhante impacto? Quem suporta ser violentado desta maneira? Que gente suporta tanta bofetada invisível sem nunca poder dizer, acudam, estão a magoar-me? Que gente aguenta um golpe sem mão?
E quando se julgava que não podia ser pior, quando não havia esperança de salvação, quando tudo se julgava perdido e que nada existiria que pudesse vir piorar a situação, que pudesse esfregar mais sal na ferida, eis senão quando se ouve uma chave a girar na fechadura, uma figura surge no limiar da porta, de mala na mão e cara de cão mal comido, a implorar por guarida e um par de braços que o recebam no seu calor. Chega quem se foi embora por já não gostar do que se comia em casa e foi em busca de novos sabores, deixando um troco para chupas. Chega, vindo dos infernos e renascido das cinzas o agressor, mesmo que passivo, o monstro, o violador de almas inocentes, o destruidor de corações puros.
Deixa-me entrar, gosto de ti, gosto tanto de ti.
Que tal, para a estatística de violência no seio das famílias por esse mundo fora? Que dizer desta nova bofetada, deste novo pontapé, do novo golpe que foi infligido sem dó nem piedade?
Problema quando se gosta de quem nos bate todos os dias, ainda com mais força no dia em que se foi embora, muito mais ainda nos dias em que esteve fora, viajando pelo mundo, quando a presença de quem bate se impõe porque ainda sobra algum sentimento.
Mas na verdade, do chupa colorido e saboroso não sobra mais do que o pauzinho, roído e sem sabor.
Gostas. Por isso te foste embora.
AS
2 comentários:
Ok, acho que devo corrigir e dizer que está entre a nossa e a deles.
E eu acho que devias aprender a ler.
AS
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