sábado, 26 de julho de 2008

A Falta do Dito

Os problemas da humanidade são vários e de vária ordem. Porém, e mesmo que todos fossem enumerados por ordem de importância e gravidade, o que sempre sobressairia seria a falta de chá. E com isto não se quer dizer que faltam as saquetazinhas com ervas, ou os potes coloridos com ervinhas migadas, ou mesmo que há falta de cafetarias a servir a dita beberagem.

A falta de chá, como conceito abstracto e, quem sabe, também indeterminado, pode ser preenchido com todo o universo de características que tornam o ser humano completamente execrável, como a mesquinhez, o egoísmo, a vontade de esborrachar semelhantes, a surdez, a estupidez crónica, a eterna mania de sabedoria inalcançável, a vontade de não fazer nenhum e esperar que caia do céu, a incongruência, a violência, a chico-espertice, a imundice, a sacanice, a filha-da-putice e tudo o que termine em –ice que queira significar o mesmo que vontade de esborrachar semelhantes.

Talvez a tal vontade de esborrachar semelhantes fosse o que melhor define a humanidade e o seu carácter com falta de originalidade, de tão estúpido que é. Mas, a bem da verdade, se se for a ver bem, ter vontade de partir o próximo em pecas nada é comparado com despedaçar, de facto, e seja de que maneira for, o gajo do lado ; ter vontade, ainda é como o outro, pensamentos pouco cor de rosa, por assim dizer, assassinos todos temos e não será por isso que tudo vai parar ao inferno com um letreiro na testa com os dizeres “Eu tenho falta de chá” – e daí, talvez seria uma boa hipótese a colocar ...
O fazer já tem o seu que de actividade superior em relação ao pensar ; já requer um pensamento e subsequentes actos de execução mais refinados. Não deixa de ser uma falta de chá. Andar aqui por andar e, não contente com semelhante façanha, ainda há que arquitectar qualquer coisinha para ver se o outro tropeça e cai numa ramagem de urtigas.

Assim, caminha a humanidade, triste e prisioneira da sua própria natureza infame. A falta de chá acompanha-a sempre, para onde quer que se desloque, juntamente com tudo o que falta de chá quer dizer. No fundo, a falta de chá, associada, entre outros, à vontade de apertar o gasganete a alguém vem do comportamento infantil de querer o que os outros querem e têm. As crianças fazem isso a toda a hora, porque querem o chupa que o puto ranhoso do lado tem, porque querem a boneca que não sei quem tem, porque o fulano tem mais manteiga no pão que eu, porque ele tem e eu não, porque ele tem e não tem nada que ter. A falta de chá começa em tenra idade ; prolonga-se ao longo da vida marcando com as suas tenazes quentes tudo o que se faz, nunca desaparecendo com a velhice e o aproximar da morte.

Já se tem falta de chá em criança, nunca mais se vai deixar de a ter. A maior e pior das maleitas afecta o ser humano desde a idade petiz. Sem cura possível.

Até porque as crianças não gostam, normalmente, de chá.




AS

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