quinta-feira, 10 de março de 2011

Eu e Ele #5

Ela até gostava dele, mesmo naqueles dias em que ele mais parecia uma gaja rabugenta com um severo síndrome de tensão pré-menstrual. Gostava quando ele lhe ensinava a fazer coisas novas, quando conversavam e ele lhe contava coisas da juventude, da faculdade, da escola. Gostava quando ele dizia piadas parvas e contava anedotas sem graça nenhuma. Achava-o parecido em grande medida com o próprio pai, o que só podia constituir um elemento de aproximação.
Por outro lado, ele até parecia gostar dela, menos nos dias em que só lhe apetecia dar-lhe um pontapé no cu, ou lhe dizia, com aquele tom de voz caractarístico, isto está uma merda, ou quando lhe fazia perguntas estúpidas às quais sabia de antemão que ela não saberia responder. Talvez por isso mesmo é que as fazia, para ver no que ia dar, para ter o gosto de ouvir uma resposta errada, quem sabe? Às vezes, perguntava na mesma, nunca esperando, na certa, uma resposta correcta. Mas esses dias também chegavam, e constituiam sempre uma surpresa. E essa era a verdade incontornável daquela relação, ele esperava sempre que ela não soubesse nada. Por isso é que ele era o mestre e ela a aprendiz.
O problema de ela ver reflectido nele o pai, e com isto ter-se-ia um longo pano para mangas sobre complexos de Electra mal resolvidos, só pode ser, tanto parlapié do paizinho só pode indicar trauma de infância, é que as crias esperam sempre que os pais gostem delas incondicionalmente, que gostem delas todos os dias, não concebendo que pudesse haver dias em que os pais têm mais que fazer e mais com que se preocupar do que estar de sorriso pronto para aturar os filhos. O que leva a que as crias se ressintam e se sinta desamadas face aos comportamentos atípicos e irregulares dos progenitores.
Fosse a idade outra e haveria aqui uma birra de todo o tamanho, com direito a lágrimas e demais desgostos.
Porém, algum juízo as rugas trazem, e sabe-se que, apesar das crises de fígado e dos coices que, com a graça do senhor, serão apenas uma fase, ou duas ou três, já se vê, um dia, ao olhar para trás, tudo será visto com outros olhos e gostar-se-á do mal disposto como se gostava antes.
Pelo menos, essa esperança existe.

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