Lembro aqueles dias ensolarados, a casa a cheirar a maçãs e o sofá velhinho que rangia quando alguém se sentava, era aos quadradinhos pretos e cremes, o sofá e cabia sempre mais um.
Lembro a máquina de costura ao pé da janela, para aproveitar a luz, da gaveta cheia de botões, tantos botões, milhares de botões, de mil e uma cores, de tantos formatos, o armário dos trapos onde Ela guardava todos os bocados de tecido que alguma vez lhe passaram pelas mãos, uma vez fez-me uma colcha e dois almofadões e um travesseiro só com os bocados de tecido desirmanados e nunca o meu quarto teve tanta graça.
Lembro o gato, que gato, um gato, havia sempre um gato naquela casa, a dormir em qualquer esquina ou a roubar um queijo da despensa, lembro da hora do lanche, daquele pão estaladiço e de côdea dura, a manteiga fresca, o leite quentinho.
Lembro-me Dele a dormir na poltrona, de boca aberta e, quando percebia que o sono era profundo, atirava-lhe sempre um almofada à cabeça. E Ele ria-se.
Lembro aquelas tardes, quase todas, em que Ela me punha a dormir a sesta, que fazia bem, que depois ficas mais fresquinha e esperta para ir brincar, e então deitava-me no sofá, com um cobertor fofinho e tapava a janela com aquela cortina laranja horrível que transformava a sala num aquário silencioso em que toda a atmosfera era laranja, os móveis, as paredes, a televisão. E não tinha vontade nenhuma de dormir, o cobertor picava e fazia calor, queria mexer no gato, mas era hora de dormir.
E lá fora passava sempre um aviãozinho, àquela hora, daqueles que faziam um barulhinho à moda da II Guerra, e prolongava a volta que dava à volta da base aérea e passava por cima da aldeia tantas vezes, e que tinha vontade de ir com o aviãozinho, que me fazia lembrar o sol que estava lá fora, e que podia ir brincar com os outros miúdos na rua, ou ver bonecos na televisão, mas não podia porque era hora da sesta. Tinha, então, uma dor no peito, que na altura não sabia o que era, e tinha vontade de ir brincar, desobedecer, fazer o que queria, queria ser grande para fazer só o que me apetecesse. Uma vez, disse-Lhe, daqui a um mês faço 7 anos e aí já não vais mandar em mim. E Ela riu-se, riu-se tanto que lhe vieram as lágrimas aos olhos, a sua menina tinha sangue na guelra, saía a Ela.
Mas o aviãozinho teimava em passar por cima da casa, todos os dias, àquela hora e eu queria estar em todo o lado menos no sofá a fingir que dormia a sesta, queria ir lá para fora, queria e não podia, quem me dera ser adulta e fazer o que quero, nunca mais vou dormir a sesta.
O avião finalmente aterrou. Anos passaram. 20, 25 anos.
Sou adulta. Faço o que quero.
Eles estão mortos, a casa está fechada, já não há cortina na janela, não há sesta para ninguém.
Hoje passou por aqui um outro aviãozinho, igual àquele de há tantos anos, se calhar ainda era o mesmo. E lembrei-me de todas aquelas tardes em que quis que o tempo andasse mais depressa, só para, depois, me arrepender desses dias que não voltam, que o tempo não pára, só eu estou presa no mesmo momento.
E todas as perdas que sofro me lembram, Dele e Dela, e do aviãozinho que passava por cima da casa onde estava uma miúda que não queria dormir.
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