terça-feira, 31 de agosto de 2010

O Francês e o Cigano

Não se sabe bem porquê, mas surge uma pequena comichão no canto do meu olho direito quando o assunto é aquela-coisa-que-o-governo-francês-está-a-fazer-com-os-ciganos, que é como quem diz, mandá-los todos lá para a terra deles que aqui só estão a estorvar.
Dá-se-me uma comichão terrível e rapidamente alastra do canto do olho direito para o esquerdo, e depois para o nariz e boca, até ter que coçar freneticamente e ter as fussas assim a modos que em chaga. Não se sabe muito bem porquê, mas deve ser do pó ou coisa que o valha, só pode.
Porque qualquer semelhança com as acções tomadas aqui há uns anos por um senhor que agora não me recordo o nome são mera coincidência; primeiro, sanear, depois mandar trabalhar e depois gasear. Como é que se chamava o homem, afinal?

O que cai melhor são as justificações do bem maior, da segurança e da prosperidade que não está a ser alcançada, porque aquela gente vem para cá e não quer trabalhar, só faz estragos e não se integra, e não pode ser. Muito bem, entende-se que há bens maiores que o governo tem que proteger, para segurança do povo. Muito bem, louvável. Pergunto-me se o povo francês também se sente bem com o senhor Le Penn a mandar bitaites racistas a toda a hora nos meios da comunicação social, se também o mandarão lá para a terra dele...

Pois que os ciganos não trabalham, só roubam e não se integram, essa é a justificação, que eu sou o mártir desta pátria e tenho que a proteger do mal. Olha se o governo francês de antigamente se lembrasse de sanear os portugueses que foram para as terras do queijo e do champagne e que viviam em barracas sem condições... Ah não, espera lá, não eram barracas, eram bidonville, que é mais fino, estemos na França, temos que falar bien, e estávamos lá para trabalhar, mesmo que o trabalho seja a limpar a merda que os outros fazem, mas isso não interessa nada, é trabalho como qualquer outro. Já agora, todos os argelinos e pessoal oriental que para lá vive, porque é que não é recambiado para casa? Não? Ah, espera, a força de trabalho não se pode mandar para casa, alors, quem vai trabalhar para nós?Ah, claro como água!

Que me lembre, acho que tive umas aulas de Direito Comunitário na faculdade, acho que agora se chama direito da União Europeia, os senhores que fundaram esta espécie de mini-federação implementaram a liberdade de circulação que quer dizer, mais coisa, menos coisa, que um cidadão da Europa tem a prerrogativa de circular livremente pelo espaço europeu para fazer a sua vida como bem entende, porque afinal, como somos comunidade, gerar riqueza em qualquer dos países é gerar riqueza para todos. Roménia e Bulgária são países da União. Ou já os mandaram embora entretanto e ninguém se apercebeu?

Obviamente que há argumentos do governo francês que têm de ser compreendidos; obviamente que se entende que não se pode estar a dar tudo de mão beijada a pessoas que chegam ao país só para esticar ao sol e nada fazer. Muito bem, tenham, então, políticas de emigração de raiz, ao nível comunitário também, não é quando os emigrantes começam a chatear pô-los a andar dali para fora.

Não fazia mal terem presente os erros que se cometeram ao longo do século XX, nomeadamente dos abusos que se fizeram a vários povos em nome de um líder e de uma causa, que nada tem a ver com os ideais da União, e que têm tendência a repetir-se nas épocas de maior aperto económico. Não fazia mal lembrarem-se que essas atrocidades tiveram sempre origem em pequenas tomadas de posição que, qual bola de neve, tiveram um efeito perverso porque se abriu o precedente.

E o precedente está, definitivamente, aberto.

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