quinta-feira, 19 de março de 2015

Este Não É Um Texto Sobre o Dia do Pai

Falar do Pai no Dia do Pai é demasiado lugar comum e demasiado sensaborão.
É um convite a resvalar para a pieguice e para a marmelada brejeira a que se assiste no dia de hoje nas redes sociais, um pouco como o dia dos namorados, em que chovem coraçõezinhos e ursinhos por cima das cabeças de todos e em que todos sem excepção têm súbitos achaques devido aos altos níveis de melaço que lhes circula no sangue.
É uma tremenda duma mariquice, duma pouca vergonha e demasiado bimbo para ser expressado.

Portanto, hoje não vou escrever sobre o meu querido e amado Pai, no dia de hoje, que é Dia do Pai.
Prefiro escrever sobre o homem que me criou, que me viu crescer e que me acompanhou em todas as etapas da minha existência, que, coincidentemente, vejam só!, é meu Pai.

Lembro-me dele a chegar a casa da minha Avó à hora do almoço, todos os dias, religiosamente ao meio dia, com as roupas cheias de tinta e a cheirar a petróleo.

Lembro-me dele a ensinar-me a andar de bicicleta, à beira da perda de paciência, na rua em frente à nossa casa.

Lembro-me dele a pintar a casa com a aparelhagem a berrar Pink Floyd ou a cantarolar Madredeus, numa voz de cana rachada, enquanto arranjava qualquer coisa que se havia partido.

Lembro-me de me sentar no colo dele, enquanto ele conduzia aquele Golf velhinho vermelho, a "ensinar-me a conduzir" aos míseros 6 ou 7 anos de idade.

Lembro-me das férias de verão, sempre em movimento, em que percorremos quilómetros e quilómetros por esse país fora, pernoitando cada dia num sítio diferente, com ele a berrar comigo porque não parava quieta para a fotografia.

Lembro-me as festas das aldeias, que temos muitas, em que ele se encostava aos muros a ver passar as procissões, sempre com ar de quem não ser saber, mas sempre a prestar atenção.

Lembro-me de todos os Natais e de todas as Páscoas, de todos os aniversários e de todas as festas de familiares e amigos, e dele, com aquele humor cáustico, a fazer piadas com a mais ínfima partícula de vida.


Recordo, mais recentemente, o humor que nunca perdeu, da capacidade de se rir de si próprio e dos infortúnios da vida.

Recordo os dias em que os Avós partiram, em que esteve sempre ao meu lado, e me deu a mão e abraçou nos momentos mais dolorosos, mesmo quando ele próprio se sentia desamparado e com vontade de quebrar.

Recordo o homem trabalhador, lutador, sempre a observar e a tirar partido das coisas boas e a saber lidar com as menos positivas, do homem que, em qualquer situação, sabe sempre o que fazer e nunca entra em pânico.

Recordo o seu exemplo de seriedade e rectidão.

Recordo o sorriso dele no dia em que soube os resultados dos exames nacionais, há mais de 10 anos.

Recordo o olhar ardente no dia da benção das fitas e no dia em que efectivamente acabei o curso.

Recordo o abraço forte e quente no dia em que me agreguei à Ordem e do apoio do seu braço no caminho até à mesa da conservadora no dia em que casei.

Este não é o meu Pai no Dia do Pai.

Este é o homem presente, o amigo silencioso de todas as horas, o pilar da minha estrutura. E não só hoje no Dia do Pai, mas principalmente em todos os restantes dias.

Uma pessoa que conheço disse-me, um dia, que não é possível escolher entre dois filhos, que não se gosta mais de um filho ou de outro, que a quantidade de amor e entrega é igual; o que existe é eventualmente um filho com o qual há uma identificação maior de personalidades e de gostos semelhantes.

Pois eu acho que se passa o mesmo com os Pais; os dois são duas metades de um todo, indissociáveis e inseparáveis, mas há uma metade que tem a cor mais parecida com a nossa, uma metade que tem o mesmo mau feito e o mesmo carácter, uma metade que tem gostos parecidos e ideias quase iguais.

E a metade do meu Pai tem a mesma cor que eu.

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