O dia de hoje não amanheceu propriamente luminoso para a minha pessoa.
Depois de uma noite com sonhos estúpidos e tenebrosos (ainda não me livrei do espírito de Halloween, fazer o quê?), acordar e saltar para a banheira, onde a água congelou nos canos e estupor do esquentador ainda está a dormir, não é a melhor maneira de dizer bom dia ao mundo.
Passada a dificuldade aquática, e ainda com o cérebro a descongelar, o pote da base resolve tirar férias e o dispensador não funciona.
Aperto, aperto e nada de sair o líquido.
Depois de quinze minutos inteirinhos a puxar, desenroscar e até morder a tampa, numa vã tentativa de a fazer saltar, acabo por mandar o frasco à parede a grande velocidade. Resultou tão bem que acabei por despejar metade do conteúdo no chão e a outra metade na cara.
Ca bom, 'tou mesmo linda nesta cor de caramelo deslavado.
Pensado que o infortúnio tinha acabado por ali, há um café muito revoltado e determinado em não ser engolido e que que salta alegremente da chávena para a camisola, branquinha como a neve.
Praguejando entre dentes, vou buscar a única camisa branca que ainda não foi para lavar. Só depois me lembrei porque é que ainda não a tinha usado.
A diferença entre a fossa das Marianas e o decote da supra mencionada camisa é para aí de dois centímetros.
Vicissitudes.
Correndo escada abaixo, que o tempo escasseia, enfio-me na carripana, disposta a voar através de meia Almada para chegar a horas. Já tinha a chave na ignição quando dou pela falta da bolsinha do tabaco.
Enumerando em voz alta todas as asneiras do dicionário de calão, voo novamente escada acima para a ir buscar, enquanto lhe dou pontapés verbais.
Não havia trânsito, a ponte estava livre, chegada ao destino num piscar de olhos. Nem tudo é mau.
O caraças.
Devo ter-me enganado. Vim a conduzir até ao Polo Norte, a julgar pela massa de ar frio e ventania que envolve esta bela comarca. E eu vestida com uma tripa...
Felizmente, pensou a minha pessoa,
no escritório estará quentinho.
Mas ainda não é hora de ir para lá.
Faltam mortalhas e filtros, caso contrário a viagem para ir buscar a puta da bolsa de tabaco terá sido em vão. O que o vício faz ao ser humano...
Repetindo todos os impropérios que conheço, vá de descer a rua.
Chega a minha ilustre pessoa à tabacaria da esquina. Não tinha trocos. Volta para trás, rapariga, hoje é o teu dia de sorte.
No multibanco, um velho a pagar todas as contas do mês. E um frio da porra naquela avenida.
Depois de tudo comprado, eis que vem no sentido contrário, no passeio, uma senhora cheia de pressa, empurrando toda a gente, na ânsia de passar.
Atrás dela, uma miúda chinesa berrava qualquer coisa em mandarim, enquanto corria atrás da mulher.
'Tu roubal, tu roubal', dizia ela.
Agarrou a mulher por um braço, enquanto repetia
'roubal, tu roubal', misturado com o que podia ser perfeitamente poesia, não consegui identificar, falava na sua língua.
Ao seu lado, materializou-se imediatamente outra senhora chinesa e as duas agarram a fugitiva, cada uma a segurar um bracinho da dita e toca de levá-la para dentro da loja.
Fiquei a observar. Eu e as outras 452 pessoas que estavam na rua, naquele momento.
Ao passar em frente da loja, podia ver as duas senhoras a gritarem com a mulher, enquanto esta, muito enfiadinha, ia balbuciando,
não fui eu, foi o meu sobrinho, ao mesmo tempo que abria o porta moedas.
Não pude deixar de pensar, cá para os meus botões, que mesmo assim, no meio de tantas peripécias e desventuras, que ainda não fui apanhada a roubar. Porque não há quem leve mais a sério a dita vergonha de roubar e ser apanhado que eu.
O dia ainda mal começou e está longe de terminar, dada a papelada sentada na minha secretária.
Porém, pelo menos, já sei que hoje não é um bom dia para deitar a mão à propriedade alheia. Com o meu rasgo de sorte, seria imediatamente apanhada.