Ainda vou na rua e já a oiço a gritar. Mal cruzo a soleira da porta, vejo logo o esbracejar furioso de quem manda vir com alguma coisa, quem a ouve até pensa que lhe caiu alguma coisa em cima da cabeça, mas não, é só a maneira que tem de conversar animadamente.
A D. Rita é uma pessoa muito peculiar. Faz-me sempre lembrar a 'Mama Morton' do Chicago.
Quando se olha para ela, dá logo vontade de fugir a sete pés, não vá a senhora virar a boca na direcção errada e uma pessoa ser soprada com toda a força, tamanha é a potência do grito que sai daquelas cordas vocais, já para não falar naquele tamanho todo que possui, que uma mulher não é nada se não tiver valentes presuntos para se afirmar na sociedade.
A voz é o que de mais peculiar possui, uma mistura de grito de cantora lírica com peixeira do mercado de Sintra, ah, pensavam que ia dizer Bolhão, mas não, não é preciso ir tão longe, que aqui também se grita e bem, com uns laivos do homem dos gelados a apregoar o seu produto. Inconfundível, mesmo para quem não entra, basta passar na rua, que já se ouve a melodia daquela mulher.
Mesmo assim, com uma voz daquele calibre, a D. Rita é a rainha do espaço. Manda no que as pessoas comem, no que as pessoas bebem, no que as pessoas fumam, no que as pessoas lêem, no que cada um faz dentro do seu cafézinho. O que há, é o que há, e quem não quer vai de lambreta para outra freguesia, que não estou para aturar isto. Assim é a D. Rita, que berra com a empregada para trazer mais um mini-prato, coitada, é uma santa, e qualquer dia, por este andar, surda também, que é doença profissional neste estabelecimento, neste ou em qualquer outro onde estiver a D. Rita.
Não se pense, porém, que ela é má. Não é. É tão simpática quanto um bulldog consegue ser. Mas ao menos, e nisso, há que dar a mão à palmatória e elogiá-la, não chateia ninguém com conversa fiada, não incomoda ninguém (tirando a parte dos gritos), não se esquece dos pedidos das pessoas, sabe quem são os clientes habituais, trata-os bem.
Mas o café da D. Rita também tem o seu quê de quartel, nomeadamente no que diz respeito aos clientes habituais, leia-se, putos do liceu em frente mais uma palhaça que vai para lá ler e fumar 37 cigarros de uma assentada, irem chatear os restantes fregueses, que palavra gira, que é como quem diz, ó menino, tire lá os pés da cadeira da D.Armanda que ela quer sentar-se, ó não-sei-das-quantas, deixa lá a senhora em paz e vai-te sentar no teu lugar ou até ó menina, apague lá o cigarro que esta senhora é alérgica ao fumo.
E, regra da casa é ouro, quem não quiser cumprir, vá de carrinho para outro lado que isto é um café de respeito, não é o cabaré da coxa. Obviamente que ninguém diz que não a nada ou sequer se atreve a ripostar. Para já, porque o medo que inspira aquela gigante mulher é coisa digna de nota. E depois porque é o único café nas redondezas em que deixam acender um cigarro, que o resto é tudo muito saudável e não deixam os putos e outros fomentar o cancro, por isso convém não criar inimizades com a mulher do café porque senão vais fumar para o jardim municipal com três ou quatro mitras à perna a pedir tabaco e moedas.
A D. Rita é uma pessoa peculiar. Gosto quando ela vai sentar-se com alguém, em horas de menor movimento, e acende um cigarro de quando em vez, que há anos que deixou de fumar, mas o vício é o vício, e nada o combate verdadeiramente, com toda a sensualidade e fala baixo, baixinho, que ninguém tem nada a ver com os assuntos que ela fala, que a faceta dos gritos é só para a freguesia da miudagem, nem sempre se pode ter ar de sargentão, e a simpatia que não mostra a toda a gente surge com todo o seu esplendor.
Gosto da D. Rita, a pessoa peculiar.
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