Conheço uma pessoa, muito querida e amorosa, que decidiu que eu já estaria em idade de receber coisas para o enchoval, palavra mais estúpida, assim como é estúpida a mania que as velhas do século XII que ainda vivem de irem acumulando trapos e cacos para quando chegar a hora de contraír matrimónio, qual doença contagiosa, para que na altura não se ande num frenesim desgraçado a adquirir tudo o que é preciso para governar uma casa.
Decidiu, portanto, essa querida pessoa, que tendo eu já uns certos cabelos brancos e umas certas rugas, mais os bicos de papagaio e varizes, estava mais que na altura de me começar a ofertar peças de enchoval. Como pratos e toalhas, bugigangas diversas para efeitar uma mesa, uma casa de banho, um quarto, essas coisas a que as velhas acham graça e que os novos acham simplesmente parvo porque, vá, coisas que a modernidade sueca traz, há um Ikea em cada esquina, e seria tão bom poder lá chegar um dia e trucidar uma conta bancária inteira em merdinhas, isso já gosto, será que dá para pôr uma lista de enchoval, não agora, no dia em que resolver adquirir habitação própria, no Ikea? É que era uma ideia do caraças.
Pessoa que não deve gostar nem um pouco dessas modernidades, insiste, quando antes as suas prendinhas de Natal me enchiam as medidas, em mandar-me para cima coisas inúteis como pratos com flores, bases para copos, marcadores de pratos, que devem ser instrumentos de tortura da Idade Média, pois que não lhes vejo qualquer outra utilidade. Nestas alturas em que ser pequeno dá um jeitaço tremendo para poder dizer ''Pa qué queu quero esta merda?", esconde-se a vontade de lhe dar com aquilo na cabeça, ao mesmo tempo que se afivela um sorriso e se balbucia um agrdecimento fingido. Que as pessoas são tão sensíveis quanto às coisas que ofertam, deuses, devem pensar que nascem todos com um jeito nato para escolher coisas para os outros, se se fossem esconder faziam melhor figura.
É triste quando os outros acham que os jovens já se começam a desviar do seu caminho natural da vida, já deviam estar casados e com um rancho de filhos, e ainda levam uma vida de larguezas em casa dos pais.
É triste que no século XXI ainda existam estas pessoas a atormentar o meu Natal com ofertório de quermesse. Quanto tento despachar as prendas da treta para elementos mais velhos da família, ainda sou fulminada com olhares de igratidão, guarda isso que ainda te vai fazer falta, um dia ainda vais agradecer, não sejas esquisita. Ou seja, livrar-me daquelas coisas feias é que nada feito.
Acho piada, ainda, ao facto de aos filhos homens dessa querida pessoa que me dá porcarias de retrosaria ninguém dar também uns jogos de banho, uns pratos foleiros; afinal, que se saiba, os homens também têm enchoval. Mas aqueles nunca têm que gramar com estas pelintrices.
Porque será?
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