Almoçava descançadinha quando um bando de adolescentes em fúria se senta na mesa do lado.
Nada de grandes surpresas, para quem convive diariamente com gente em idade escolar o barulho e a confusão são o prato do dia. Tivesse ela com quem fazer barulho e também o faria.
Porém, e sem a habitual capacidade de ouvir a conversa alheia a metros de distância, que os ouvidos de tísica são um defeito congénito, que naquele dia não foi preciso usar dessa prerrogativa, debatiam-se dois espécimes, um do sexo feminino, outro do sexo masculino, em que o rapazinho fazia uma fita digna de uma peixeira do Bulhão para tirar o telemóvel das mãos da piquena.
Nada que fosse demasiado estranho, poder-se-ia pensar que o telemóvel lhe pertencia e qua a moça furtivamente o teria furtado.
Todavia, rapidamente a conversa do deixa cá ver, dá-mo cá evolui para uma discussão gigantesca, com palavras pouco simpáticas e gestos nada meigos para tirar o telefone da mão da rapariga.
Com o evoluir da conversação, que não se está a ouvir coisa nenhuma da conversa dos outros, os outros é que se fazem ouvir no meio de toda a turba que almoça e fuma enquanto bebe café, percebe-se que o que o rapaz está a fazer é tão simplesmente tirar o telemóvel da mão da que afinal é namorada dele para poder ver se um outro se mandou ou não uma mensagem.
Em vez de o fazer subtilmente e depois fazer o escarcéu desejado, como qualquer gaja teria feito, faz uma cena medieval, ameaçando e usando da sua força para poder forçar a intimidade da rapariga que, balbuciando palavras desconexas, faz tudo o que pode para manter o objecto entre as suas mãos, enquanto tenta por tudo que o rapaz não veja o que ela não quer que ele veja.
Só que o homem tem, há mais de vinte e um séculos, um pendor de superioridade sobre a mulher por algum motivo; podem não ter cérebro, mas têm mais força e, eventualmente, consegue forçar os dedos da moça. E ver a caixa de mensagens. E parece que vê o que não quer. Parece que é uma mensagem de outro gajo, um rival.
No meio de toda a cena, está uma outra rapariga, uma amiga da moça, que tem sempre que haver uma amiga, ou então não há mundo e está tudo perdido que, com um ar de tédio descomunal, assiste à cena, com uma cara de indiferença e o desejo de estar a pintar as unhas dos pés de rosa fuchsia em vez de estar ali, vê o rapaz atirar o telemóvel para cima da mesa e debandar dali em fúria, com certeza na esperança de esbarrar com o tal outro e rachar-lhe a cabeça em dois.
A amiga olha para a moça, que está com ar de quem foi atropelada por uma vaca desgovernada, e com gestos de superioridade, pergunta-lhe simplesmente porque raio não apagou ela a mensagem, e já nada daquilo se teria passado.
Nesta altura, a pessoa que ouvia a conversa enquanto fingia que lia enquanto comia, pára subitamente o que está a fazer e tem que fazer um esforço titânico para não saltar do lugar e ir explicar uma coisinha ou outra àquelas duas.
Nem está em causa a mensagem, quem mandou, quem respondeu, quem fez o quê; era só mesmo para perguntar à amiga espertalhona porque raio é que a rapariguinha estúpida e submissa teria que apagar o que quer que fosse do próprio telemóvel quando o estupor do namorado bandalho tinha acabado de quase lhe partir os dedos e gritar-lhe para ver a merda do telemóvel. No fim acaba sempre por ser a mulher a ter a culpa, será? A mulher é que devia ter apagado a mensagem, porque assim o homem já não reagia daquela forma. E a outra, a estúpidazinha que nem coragem tem para fazer frente aos 'ataques' que sofre, deixa que o ogre faça cenas no meio da rua e a humilhe para ver se tem uns chifres a crescer por causa de uma mensagem.
Como é que querem que a violência doméstica não cresça se numa coisa tão minúscula se faz um pé de vento e se usa da força para fazer prevalecer a sua vontade?
Como é que querem prevenir um flagelo destes se as mulheres do amanhã deixam que se faça tudo, inclusive uma cena de faca e alguidar, por causa de insignificâncias?
Fosse quem ouvia uma idosa de 80 mil anos, diria logo que esta geração é um nojo e que o mundo está perdido.
Como, no entanto, ainda é relativamente jovem, diz apenas que não é só esta geração que é um nojo, que nojos destes há em todas as gerações de mulheres e que o mundo não está perdido, não senhor, nunca esteve, porque, muito simplesmente, não nasceu para ser salvo.
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