segunda-feira, 14 de junho de 2010

Dobrou a Esquina, Deixou de a Ver

Um dia, viu-a na rua. Tinha no olhar o peso do mundo e o fardo do desassossego nos ombros. Caminhava de cabeça baixa, olhando as pedras da calçada, como se lhe pudessem dar uma qualquer resposta para as perguntas que nem sabia formular. Ia pela rua, arrastando o passo para um sítio qualquer, sem um rumo que não fosse dar ao inevitável abismo.
Oh, sabia reconhecer os sinais. Sabia de onde vinha, para onde ia; só não sabia como sair dali. Mas sabia reconhecer os sintomas. Até bem demais.
Quis falar-lhe. Correr atrás dela, para a abraçar, para lhe dizer que tudo passaria, para lhe contar as mentiras costumeiras das pessoas que nada sabem mas que tudo pensam saber. Quis ir ter com ela, puxar-lhe por um braço, ver-lhe as lágrimas, ver-lhe o negro da alma. Quis dizer-lhe coisas que a tirassem do vazio, que a puxassem de volta à realidade.
Mas não o fez.
Quis ir ter com ela, quis ouvi-la, perceber o que havia lá dentro. Quis agredi-la, quis aconchegá-la.
Mas deixou-a ir.
E ia dizer-lhe o quê?
Que sabia o que era, como era e o que se seguia? Grande consolo.
Que aquela era uma oportunidade única para criar defesas e aprender? Porque é que me estás a dizer uma coisa dessas??
Que nunca mais iria recuperar das feridas, mas que elas podiam servir de memorial para não mais repetir? Quem é que tu pensas que és?
Que um dia havia de acordar do pesadelo e perceber que aquilo a tinha moldado? Ora, porque não vais ver se chove?
Não, não lhe podia dizer nada. Não lhe podia dizer que viriam mais homens que lhe fariam o mesmo; não lhe podia dizer que não podia ter tanta esperança e expectativa nas pessoas porque mais tarde ou mais cedo, toda a gente a ia magoar; não podia dizer-lhe que este era um caminho que teria que fazer sozinha, para fora do abismo, para fora do desespero, para fora da escuridão, e ninguém a não ser ela a poderia ajudar, tinha que ser feito, e tinha que ser ela; não lhe podia dizer que depois desta, outras viriam, inevitáveis como o fim, e que ela teria de estar preparada quando chegasse a altura.
Não, não lhe podia dizer. Seria como uma declaração de inimizade. Seria visto como um ataque, como um pisar de dedos a quem está suspenso apenas pelas mãos à beira do precipício. Seria visto como um repetir de coisas que provavelmente ela já saberia, e isso é coisa que não se faz.Os amigos passam a mão pelo pêlo uns dos outros, balbuciando mentiras doces, à espera que passe, esperando sempre que nada corresse mal. Não, não lhe podia dizer nada.
E dizer o quê, palavras negras?, verdades destrutivas?, verbos desprovidos de sentido? Para quê falar se o que está para ser dito é o que mais se teme, é o que mais dói, é o que mais destrói? Para quê, se o que está para ser dito ainda faria mais estragos que coisas boas? Para quê, ir pôr mais uma acha na fogueira, se, sozinha, ela já se queimava?
E quem diz que tem que ser assim? Quem diz que terá de ser, inevitável e cegamente, assim? Quem diz que tem de ser um caminho feito de desconfiança, e traição, e dor, e insónia, e angústia? Quem diz que não há, afinal, bondade na humanidade, e que no fim, todos acabam por fazer qualquer coisa de bom que permita o perdão e a felicidade?
Quem diz que essa não era só a interpretação que foi dada e esculpida por uma existência que em nada se assemelha à vivência dos outros?
Quem lhe diria que estava certa e os amigos das mentiras doces estariam errados? Quem garante que assim seja?
E continuou, parada no passeio, a vê-la afastar-se, ombros curvados, uma nuvem invisível por cima da cabeça. E não lhe disse nada, deixou-a ir.
E pensou, ao retomar o seu caminho, se fez o que estava certo ou apenas o que deveria ser feito. Pensou se, afinal, não valeria a pena ter corrido atras dela, só para dizer, olha, estou aqui, já passei pelo mesmo, dar-te-ei a mão enquanto caminhares no escuro, depois disso também, nada posso fazer, mas estarei de mãos dadas contigo até que queiras voltar desse reino distorcido.
Mas deixou-a ir. Deixou-a ir, sabendo que tinha duas mãos, e que pelo menos uma delas poderia ter segurado a dela.
E teve vontade de chorar com ela, e de lhe limpar as lágrimas, de lhe bater e de lhe gritar, de simplesmente nada dizer. Só estar ali.
Até podia ser que ela chegasse a um conclusão diferente da sua, que conseguisse ainda ter esperança, que conseguisse ainda acreditar, depois da tempestade, que existiria sempre bonança. Até podia ser...
Mas não. Deixou-a ir.
Deixou-a ir, perder-se na escuridão, quem sabe se para algum dia voltar.
Deixou-a ir, sem lhe garantir que há volta, só que como pessoa diferente, quem sabe.
Deixou-a, sem lhe poder dar a mão.
Dobrou a esquina, deixou de a ver.

3 comentários:

A info-excluida disse...

Obrigada.

Cátia disse...

Uau...adorei!

Diligentia disse...

Thank you, both