sábado, 13 de outubro de 2007

Analogia do Pecado

Há outro conceito que pode seguir os critérios do pecado.
Diz-se que se peca por pensamento, palavras, actos e omissões. Há outra noção que cabe aqui, e é preenchida em todos estes âmbitos.
Também se trai por pensamento, palavras, actos e omissões. A traição cabe nas formas de pecar. Em todas elas.

Trai-se por pensamento quando o que vem a mente é negro, sujo, sem sentimento, cheio de velhaquice e mesquinhez. Trai-se por pensamento quando o ódio que flui nas veias tolda a vista e se deixa levar na torrente quente das lágrimas e do sangue pulsante. Trai-se por pensamento quando não há maneira de impedir que o veneno se espalhe, minando o que antes era, arrasando com tudo, acabando com a réstia de esperança.
Do pensamento à palavra, um passo. Porque nada com uma força destas fica preso muito tempo. E da escuridão do pensamento passa-se à violência do verbo. E porque a mesquinhez também não fica sozinha muito tempo, isolada no pensamento, tem que saltar cá para fora de alguma maneira, mesmo que fira e corroa tudo a passagem.

Palavras são actos, ao fim e ao cabo. As palavras pronunciam-se pelos movimentos dos lábios, com conjunto com o aparelho fonético inteiro a trabalhar, por isso também é agir. Acto de passar a palavra. Não precisam sequer de falar. Gritar, bater, esmurrar, partir tudo a volta, também serve. Também é agir.

Trair é isso mesmo. Acto. Puro e duro. Nada mais senão acto.

Omissões. O que é isso, afinal? O que se esconde, afinal? O que não se faz? O que não se diz? O que ficou por fazer? O olhar que se troca, o gesto que não se fez mas que se teve vontade de exprimir. O que fica por dizer mas acaba por ser dito pelas frases meias feitas, meias acabadas ; pelo olhar ressentido, pelas palavras que tem vontade de saltar furiosamente cá para fora mas que ficam encarceradas debaixo da língua sem autorização para sair porque se tem demasiado medo. Também se trai por omissão?
Também se faltam aos deveres no que ficou por dizer e no que deveria ter sido feito. Também se falta ao dever reciproco de respeito, de fidelidade ao não dizer o que deveria ter sido dito e feito.
Trai-se porque não se faz. Trai-se porque se frustra o que era esperado. Não é só ao reprimir que falha alguma coisa.
É o que essa repressão traz que de alguma forma frustra grandemente o outro lado da traição, vulgarmente conhecido como o corno.
E ao pobre do corno falha tudo. Falham os pensamentos, não exprimidos, falham as palavras, os actos, falha, essencialmente, a lacuna que fica pela mão da omissão.
E se os pecados podem ser perdoados e absolvidos, e dessa forma, conduzir as almas à vida eterna, o mesmo não acontece com a traição, e a analogia acaba aqui.
Só serve para aplicação dos mesmos critérios. Porque o pecado tem perdão. A traição não. Nem absolvição.
Guia as almas, é certo, mas não para um lugar de vida e alegria eterna. Para um lugar mais reles e menos limpo, talvez.
AS

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