Era mais ou menos ponto assente que ela era o homem da relação.
Não em termos de autoridade, não em termos de sustento de uma casa, ou última palavra em decisões, ou chegar a casa e alapar o cu no sofá enquanto o outro faz o jantar, ou arrear no parceiro, ou sequer ter postura masculina em todas as situações.
Mais em coisas dia-a-dia, como não gostar de lamechices, amo-tes e xi-corações e essas merdices que inventam para encher de melaço quem ouve, detestar ofertório de flores, ouvir a toda a hora odes à virtude do ser amado, não perguntar, mesmo à laia de gaja cor-de-rosinha até à 15ª geração, em que se pensa, se gostas de mim, sinto a tua falta e esse género de frases que fazem com que tenha vontade de dar com um martelo na cabeça para se acabar com o sofrimento.
Não gostava de demonstrações de afecto em demasia porque seriam necessariamente uma amostra da dependência emocional que um dia se jurou nunca mais ter; seriam demonstrações da gente parva que anda por aí de peito aberto a mostrar ao mundo as fragilidades, não sabendo, ou fingindo não saber, que o mundo havia de se aproveitar disso no imediato; não seria mais do que a estupidez humano no seu auge, a mostrar e a comprovar que nada se aprendeu com as agruras da vida. Não gostava porque tinha no pêlo anos e anos de desventuras e sabia que as coisas doces que supostamente viriam do coração não podiam trazer nada de bom.
E era nisto que ela era o homem. A fingir dureza e indiferença, a desprezar as fofuras e coraçõezinhos, ursinhos e demais peluches, que isso é coisa de gaja desmiolada e carente, não pode haver nada mais errado que uma pessoa ser frágil e aberta a que lhe espezinhem os interiores, que isso dói como o caraças e sai muito caro, quanto mais não seja, ainda há direito a um abatimento nas despesas de saúde, em sede de IRS, daquilo que se paga ao psiquiatra.
Era nisto que ela era o homem. Não porque o ressabiamento a tivesse tornado um calhau, se calhar, vai-se a ver e tornou, mas o acto reflexo de recuar perante tanta fofura estava mais entranhado do que a porcaria nas paredes de uma fossa, e contra isso, os habituais tubérculos.
Um dia em que se falava em planos futuros e vidas em comum, sem as partes fofinhas aqui para a mesa do canto, fáchavor, questionou-se, na senda da vida miserável que levam os estagiários e aprendizes afins, se porventura algum dia dois desgraçados a ganhar 500 míseros euros conseguiriam juntar trapinhos e ter um barraco onde morar.
Ao que ele responde, depois de pensar dois segundos, que dar, até dava, mas seríamos pobres.
E ela ficou a pensar naquilo. Durante dias a fio, não pensou senão na pobreza de ter um casebre, comer só pão com manteiga e beber café de chicória, ser quase insolvente e fazer a ginástica orçamental que 9 milhões de pessoas neste país faz todos os dias para conseguir sobreviver e não morrer de fome ou no esquecimento de vida quotidiana.
Obviamente, nada lhe disse, afinal ela é o homem, o homem sem sentido de pieguice, que ele obviamente tem entranhado naquele corpinho que deus lhe deu, mas lá no fundo, apesar de nada dizer, apeteceu-lhe ser pobre, viver de torradas e contar os trocos para pagar a renda, mas viver ao pé dele a todas as horas. Quis ser pobre.
Mas não disse. Nem vai dizer, que isso é coisa de gente idiota, coisa típica de gente otária que carrega o coração ao alto, pronto a ser atingido com todos os estilhaços e lanças que andam pelo ar. Não disse, nem vai dizer, que os homens, brutos e arrogantes, não dizem essas merdas, não choram pelos cantos com a emoção nem com os sentimentos, não se demovem com aquilo que vem de dentro, nem se deixam levar por aquilo que é espontâneo e sentimental, que esse é um bilhete só de ida para a casa dos malucos.
Ela era o homem da relação. E queria ser pobre. Mas isso não se diz.
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