Oh, não, não penses que me esqueci de ti.
Que não ponha aquele ar tão contente de criancinha que vai roubar uma bolacha quando ninguém está a olhar, não vale a pena pôr cara de conspurcada inocente, esse eterno vilipêndio no olhar, de quem sofre e carrega as amarguras do mundo nos pobres ombros, esse semblante de mártir, esse ar de Cristo na cruz.
Esquece, porque eu não me esqueci, ainda há-de vir longe o dia em que me esqueça, que isto das mentes rancorosas têm sempre o seu quê de idiotice, quem sou eu para negar a minha própria estupidez, não se pode lutar contra aquilo que é natural, enfim, cada maluco, passo a repetição, sua ideia, não vale a pena, está no sangue, terá que ser.
Mania de regressar dos mortos, com que então. Muito bem, crê-se que sim, há que manter uma mente aberta, tudo será possível até prova em contrário, o que, na prática, quer dizer que tudo o que os outros resolvam inventar, temos que aturar e suportar, pois então, que é isto senão o viver social, comam e calem, que a seguir vem mais. Ou seja, tudo o que se quiser dizer e fazer, está-se à vontade, é tudo do povo, os outros é que são os maus, não é, então faz-se o escarcéu que mais aprouver e os restantes que se fodam, quem vem trás que feche a porta, lá diz a minha avó, e melhor para sabedoria popular não há, os velhos sabem tudo, e o que não sabem, inventam que a idade colmata o resto.
Regressar dos mortos não é lá muito boa ideia. Digo eu, vá, que não sei nada de nada, e hoje estou com um feitio desgraçado, não digo coisa com coisa, que nunca disse, mas enfim, e nem sequer é dizer, é escrever, já nem dá para usar figuras de estilo que vêm logo chatear com a exactidão linguística.
Chateia, o regressar dos que partiram, dizia, porque já se tinha habituado a viver pacificamente sem presenças incómodas, sem pestilências, sem outras coisas que tais e de repente, já cá está o cadáver a melgar, que merda esta, afinal enterram-se os defuntos por uma questão de higiene e depois é isto, quero mas é o meu dinheiro de volta.
Então, então, pensavas que me esquecia de ti? Isso é que era bom.
Não só não me esqueci, como sou obrigada a lembrar-me, porque os mortos afinal não morrem, os cabrões, continuam a vaguear por aí, uma maçada, por isso não há esquecimento nem perdão, como se diz lá para os lados de Baleizão, voltou e mais valia que tivesse ficado na tumba, ah pois é, que isto das voltas linguísticas são tramadas, quando menos se espera, voltam para nos morder o cu, é o que há.
Não me esqueci, pois não. Não podia ser tudo fácil, pois não? Nem se podia contar com tal facto, com os outros talvez, para quem já deu para esse peditório é que já nem por isso.
Não me esqueci, não.
Um bocado tarde para isso.
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