Ser esbaforido corre pela rua fora, de casaco a voar atrás, com a melena numa fúria, cheia de pêlos de gato e bigodes de leite, tentando fugir à chuva, tentando chegar a horas ao compromisso.
Depois de percorrer três vezes a mesma rua, sempre à chuva, sem conseguir dar com o raio da porta pretendida, depois de praguejar alto e bom som, de perguntar a quatro ou cinco idosos o caminho, que costumam saber sempre onde tudo fica, mas que tinham ar de nem saber onde estavam, lá se acha o dito sítio, percebendo de imediato que se passou as três vezes que se percorreu a rua mesmo rente ao lugar.
Largando pingos de água por toda a parte, ser esbaforido entra por ali dentro, com todo o rubor do mundo na cara, dá de caras com um senhor cheio de enfeites e pulseiras de todos os feitios,com a perna traçada de tédio e raiva às pessoas que não sabem ver horas, tira os pertences ao ser, leva-os para um canto escuro e manda sentar.
Cheia de vergonha do aspecto que traz, com ar de mendiga a contrastar fortemente com o chão e paredes impecáveis, senta-se numa cadeira com escabelo incorporado, enquanto o cabelo é mergulhado numa pia e encharcado com todos os produtos do mundo.
E depois, o senhor cheio de enfeites e pulseiras de todos os feitios mete-lhe as mãos no cabelo, com arte, sabedoria, mestria, paixão. E depois senta o ser esbaforido, que olha com tristeza o seu rosto pintalgado de vermelho, gatinho e vestígios de leite, e puxa, e repuxa, e volta a puxar a melena indomável, até ao fim, quando já parece uma toalha de seda, e o rosto já não parece o de uma pedinte.
E ser esbaforido, que agora é um ser eufórico, tem vontade de beijar o senhor cheio de enfeites e pulseiras de todos os feitios, pelo magnífico trabalho.
Oh deus, como sou fútil.
2 comentários:
muy buen blog, saludos
Gracias! Seja bem vindo!
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