Desde o berço até à cova, filho é sempre filho, sempre devedor de respeito e boca calada a opiniões, de cabeça baixa para as posições tomadas porque em minha casa fazes o que eu mando e mais nada, mas onde é que isto já se viu.
Sob a égide da benquerença para os filhos, tudo serve de desculpa para imposições, sermões e missa cantadas em todas as línguas, pragas e profecias, onde se chora aos quatro ventos que a ira de deus se abateu sobre a cabeça da progenitora que vê a sua criança ir-se pelos caminhos sinuosos de ideias que não são as dela, que vê a sua criança perder-se pela vida que não ela a escolheu, porque a moral e os bons costumes que transmitiu não sortiram efeito nenhum e o devasso do filho faz o que lhe dá na telha. Porque o que ela, paridora de uma criança grande queria, mesmo que não confesse e que as vezes berre o contrário, o que mais desejava era o que sonhava quando o puto ainda estava no quentinho das suas entranhas, como um curso de senhor doutor que cura maleitas, uma vivenda perto da sua querida mãe para que o possa visitar sempre, uma esposa à altura, de boas famílias, e se possível netos e mais netos para estragar com mimos. Na altura, não pensou que o puto poderia querer uma vida à medida das ideias dele, à medidas dos padrões que lhe foram ensinados mas adaptados à pessoa que, de facto, é. Não pensou que não podia toda a vida dizer ao catraio o que fazer, não pensou nunca que o ia ver com barbas, crescido, senhor de si, imaginou que com ela iria ser diferente, que junto dela nenhum relógio alguma vez funcionaria, o tempo nunca passava da infância terna e feliz do seu menino, e ele sempre ouviria a mãezinha como quem ouve a voz de deus.
Não se admirem, portanto, as almas inocentes que muito se espantam do sangue do seu sangue tornar-se numa coisa que não era bem aquilo que desejavam quando tudo começou, um filho maltês, uma filha levantada, sangue envenenado, as tentativas de impedir que o filho salta a cerca, por mais que se tente, por mais que se chore e grite, por mais que se ameace, por mais que se peleje, o resultado é sempre diferente do esperado, ou o filho faz o que vê em casa porque não tem mais hipótese, ou vai ver novos mundos por sua conta e risco, mesmo que se arrisque a que o rotulem de maltês ou levantada.
Assim não é, os progenitores não querem é perceber o simples facto de que se hoje são pessoas, boas pessoas, quem sabe, é porque tiveram oportunidade de se desenvolverem sozinhos. Talvez com a contrariedade dos seus pais deles. Talvez uma cópia do que em casa havia por ser cara a originalidade. E os filhos? os filhos ouvem o que parece uma praga vinda dos sete cantos dos infernos porque afinal soa a ingratidão quererem caminhar para fora do ninho que os viu nascer. Oh, crime dos crimes, maldição sobre a terra, malfadada a hora em que te pus no mundo, criatura estúpida que nem fazer o que eu quero por duas ou três décadas fazes, imundice em forma de gente, é esta a paga que se leva de uma vida de dedicação a um filho.
O que diz a Constituição sobre a auto-determinação pessoal, livre de imposições, conta muito pouco nestes campos. Interessa que se agrade a gregos e a troianos, que é como quem diz, a quem o agregado familiar contiver, o resto releva pouco. Deve ser umas das consequências das pernas que crescem e do cérebro que estica, faz apagar da memória o que em jovem se era, o que se queria e não se teve, o que era objectivo e virou frustração ao longo do tempo, o que se construiu baseado numa ideia de ir mais além mas que ficou preso num limbo de imposições paternais, de ingratidões familiares, de caminhos para fora do ninho que nunca chegaram a grande viagens muito por causa da corrente presa nos pés daqueles que nasce.
Explica muita coisa, pode crer-se.
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